VIII. O futuro de Anitta

Depois de anunciar a sua aposentadoria no Prêmio Multishow, ocasião que aproveitou para declarar sua intenção de se dedicar a um curso de filosofia da neurociência, Anitta entra em um carro blindado e parte em direção ao aeroporto. Ninguém a espera em parte alguma. Na sala de embarque, hesitante, um sujeito franzino a aborda com um uma caneta e celular em punho. Sem querer incomodar, já incomodando, seria demais pedir um autógrafo na capinha?

O rosto do sujeito fica impresso na memória dela para sempre.

Anitta desembarca em Nova York e Vai direto encontrar o Homem de Capuz Preto. Pássaros estranhos cruzam o trecho de céu do beco entulhado de caçambas e sacos de lixo. Uma viatura da polícia passa muito devagar pela fresta da Terceira Avenida. Ouvem-se os risos de um grupo de adolescentes, e então, por alguns minutos, apenas o ruído distante de pneus contra o asfalto molhado. Dentro em pouco, os ratos são os únicos a vê-la ganhar a avenida carregando um embrulho de papel pardo.

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De volta a São Paulo, quarenta graus, um cheiro de morte e muito trânsito entre a Liberdade e o viaduto em que se encontra a limusine dourada. Apanharam-na seminua, precisou se enrolar no lençol de cetim do hotel, o povo que viu pensou que o sequestro fosse tendência. Com uma venda rosa sobre os olhos, Anitta grita, mas o grito é abafado por alguma coisa que sente com a língua, um tecido muito poroso, gaze talvez.

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Anos se passam sem uma aparição pública da outrora maior estrela do pop brasileiro. Não muitos, três ou quatro, apenas o suficiente para o surgimento de mais alguns nomes na cena. Na opinião pública, elas não passam de imitadoras baratas. Nunca chegam a fazer tanto sucesso quanto a original, é claro.

Os boatos vão se acumulando. Alguns dizem que Anitta foi vista num shopping em Fortaleza, amamentando um par de gêmeos enquanto comia batata frita. Outros, que se mudou para Miami, onde se casou com uma mulher chamada Helena. Nada envolvendo filosofia da neurociência, nenhum registro dos paparazzi, nada além de boatos.

As empresas de que fazia parte são então adquiridas por conglomerados de mídia estrangeiros. Um insider da indústria anuncia no Reddit que, segundo relatos, ela estaria se desfazendo dos bens para escapar de uma investigação envolvendo lavagem de dinheiro. Nos cartórios de distribuição criminal, a ansiedade é grande. O burburinho cresce. Mas, nada acontecendo além disso, desaparece na mesma velocidade.

Ana Maria Braga anuncia um café da manhã com uma convidada especial, mas não é ela. Uma dançarina morena cruza a avenida no carnaval seguinte usando apenas uma máscara e um tapa-sexo. A semelhança é assombrosa, a não ser pelo fato de que leva uma marca de nascença em forma de lua crescente no jarrete esquerdo. Nos bailes de Honório Gurgel, homenagens são feitas quase semanalmente.

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Ao chegar em casa com o embrulho pardo, Anitta deita sob o dossel de veludo vermelho que emoldura sua cama e cai num sono profundo. Sonha com um médico vestido de cachorro. Ele é um médico mesmo, mas é como se o jaleco fosse a pele de um cachorro. O rosto é humano, apenas um pouco mais alongado, e ele usa óculos redondos de aros dourados. Ele tenta lhe explicar a verdadeira natureza da neurociência. Ao contrário do que declararam seus idealizadores, não se trata de descobrir o modo de funcionamento do cérebro, mas de explorar suas possibilidades ainda ocultas. O voo, por exemplo, uma habilidade adquirida ao longo da evolução por algumas espécies, por elas colocada em prática com tanta naturalidade, também pode ser encontrado no nosso cérebro. Adormecido, sim, uma forma prototípica de voo, talvez, mas está lá, como um tesouro esperando para ser descoberto. Prova-o o avião, ou antes o impulso que levou o ser humano a criar uma geringonça tão absurda quanto o avião, sem o qual uma carreira como a dela não poderia ter acontecido. Novas conexões são feitas todos os dias, as que se estabelecem entre partes de nossa mente que não sonhamos existir sendo tão valiosas quanto a ponte que conecta a ilha ao continente. Outras conexões se perdem, pontes que desmoronam, deixando do outro lado ilhas, ou mesmo continentes, à deriva. Logo teremos adquirido novas lembranças e habilidades que o futuro de nossa espécie nunca sonhará ter possuído. E ela não fará parte disso, diz o médico-cão. Anitta não tem futuro. Mas não há por que se preocupar com isso tudo, conclui, sacando uma seringa que enche com o líquido de um frasco arredondado do tamanho de um punho, pois até lá o mundo também terá deixado de existir como o conhecemos. Vire-se agora, diz o médico-cão, que não vai doer nadinha se você relaxar.

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