A mudança foi mais longa do que esperávamos – não planejamos a coisa direito, saímos meio que fugidos do último apartamento, cujo aluguel havia se tornado abusivo, não contamos com o prazo da fornecedora de energia para ativar a unidade ou seja lá o que for, então ficamos quase uma semana no escuro, e nem todos os móveis cabiam no apartamento novo, portanto precisávamos nos livrar de muita coisa, e rápido, o que, obviamente, não aconteceu, chamamos a diarista para buscá-los só semanas depois –, de modo que, quando tudo acabou, Internet e luz ligadas, cada coisa em seu lugar, já mal tínhamos forças suficientes para empregar no trabalho diário, quanto mais na limpeza. A limpeza superficial, sim, é claro, nós fizemos, mas não esfregamos os rejuntes, por exemplo, nem levantamos os sofás para tirar a poeira acumulada das nuvens levantadas pelos livros, que já não eram espanados havia anos, nem tínhamos rodos ou cabos nas pontas dos quais pudéssemos pendurar panos para limpar rigorosamente as janelas pelo lado de fora e por aí vai, por aí vai, numa lista de tarefas tão longa que não me animo a descrever aqui. Não nos importamos muito com isso, na verdade, porque já sabíamos que seria difícil, embora tenha sido bem mais do que o esperado, e tínhamos combinado de chamar uma diarista na primeira oportunidade. Fomos nos adaptando à sujeira oculta, primeiro, e depois à plenamente visível, enquanto essa oportunidade demorava a chegar, uma vez que precisávamos trabalhar muito para arcar com despesas mais urgentes, além de saldar as dívidas geradas pelo aluguel do apartamento antigo, dívidas, aliás, abusivas, conforme já mencionei, extremamente abusivas, revoltantes mesmo, pelo que decidi abrir um processo contra a antiga imobiliária, pois me cobravam um valor de rescisão pelo apartamento de que fugíramos como se fosse a praga maior que os meus rendimentos acumulados por um ano, sendo que nós mesmos havíamos limpado tudo, feito todos os reparos necessários e pintado as paredes antes de sair, saímos às pressas mas saímos com tudo organizado justamente para não precisar pagar pessoal indicado pela imobiliária, que cobraria um valor ainda maior que a própria imobiliária, e agora, o que mais podíamos fazer? Neste entretempo, o celular da minha esposa quebrou. Ele vinha parando de funcionar aos poucos, na verdade, fazia meses, após uma série de quedas, um dia não respondendo ao toque, outro deixando de reproduzir um vídeo, até que, não mais podendo, largou silenciosamente a vida, entrando em tela preta eterna. Tentar consertar seria contraproducente, era um celular velho e já quase sem valor, pelo que fomos procurar um iPhone em um marketplace da Internet e lá descobrimos um modelo recente o bastante, nada muito chique, mas que suportava o último sistema operacional – o que, em se tratando da Apple, já é muito –, com a única desvantagem de se tratar de um modelo de vitrine. Ora, a minha esposa já tinha comprado um celular de vitrine antes e teve uma experiência boa com ele, o aparelho nunca dera problema, a não ser os problemas que os aparelhos dão por conta da obsolescência programada etc., então decidimos comprar esse iPhone de vitrine mesmo, que dava para o gasto – à época ela tentava administrar um ecommerce de moda feminina e precisava estar móvel e conectada o tempo inteiro, com os clientes caindo em cima a qualquer hora do dia ou da noite, especulando, cobrando, fazendo perguntas incessantes após visitar o site, sobre o valor das peças, por exemplo, todos inequivocamente elencados no site, bem como as suas cores, os seus tamanhos e o custo do frete, calculável por meio de uma interface gráfica que também se encontrava no site, sobre o material de que eram feitas, se eram de produção própria, se eram sustentáveis, encolhiam, rasgavam, se enviávamos para a região metropolitana por mototáxi no mesmo dia, trocávamos em caso de desistência ou fornecíamos garantia contra traças. Para isso tudo ela precisava de um celular, e o iPhone de vitrine, que chegou sem demora, se revelou muito adequado, pelo menos por um mês, um mês e meio, até o aparecimento do primeiro problema – o botão de diminuir o volume deixou de funcionar –, do segundo – a rede de dados móveis passou a falhar dia sim, dia não, ficando ausente por diversas horas em cada ocasião, até não voltar mais, a não ser quando retirávamos o chip para passar nele uma borracha, técnica encontrada online, e mesmo assim só com sorte –, do terceiro – a lente da câmera traseira simplesmente caiu –, do quarto – a tela parou de responder adequadamente ao toque etc., até, enfim, tornar-se completamente inútil, nada mais que um amontoado de peças chinesas destinado ao lixo. Meses haviam se passado desde a compra, mais do que a garantia do marketplace cobria, então, como solução amistosa para o problema, uma atendente do marketplace nos recomendou entrar em contato com a loja parceira responsável pela venda, que nos oferecia gato por lebre, basicamente querendo que pagássemos de mil a dois mil a mais numa troca do aparelho avariado por modelos semelhantes. Resolvi processar então também o marketplace, embora não a loja parceira, que, numa pesquisa rápida no Google Images, descobri se tratar de um muquifo na periferia de São Paulo, e, como no processo contra a imobiliária – digo imobiliária para simplificar as coisas, mas na verdade processei a seguradora, que havia prontamente me negativado – indevidamente! – por solicitação da imobiliária, que aliás nem sequer havia se dado o trabalho de me enviar um demonstrativo da suposta dívida –, decidi que advogaria em causa própria, tirando assim definitivamente a OAB da gaveta, eu sou advogado mas não pratico, não tenho tempo nem para a minha ocupação principal, a qual não vou revelar, sinto muito, mas neste caso, nestes casos, valia a pena, valiam as penas, pareciam valer. Pois bem, petições iniciais feitas e protocoladas, pedidos de tutela antecipada bem estruturados, olhei para o apartamento novo e vi o estado de caos em que se encontrava. Não sabia o que fazer, precisava trabalhar, minha esposa se virava com a loja com um laptop que pegamos emprestado do meu pai, foram duas semanas sem celular, a coitada quase teve um treco, até que compramos outro, usado, mais simples e barato que o anterior, o qual perdura até hoje, embora o vendedor tenha nos dito que nunca havia sido mexido e tenhamos descoberto, menos de quinze minutos depois, que havia sim – esse tipo de coisa fica registrado no sistema, não somos bobos, mas não tínhamos mais tempo para reclamar, pegamos o celular e seguimos em frente. Em frente, sempre em frente, redemoinhos de sujeira na sala, banheiro criando mofo, consegui um trabalho enorme, me ajudaria a pagar todas as dívidas, a esta atura já tinha feito três empréstimos em instituições diferentes, antes de negativarem meu nome, é claro, ou a maior parte delas, nisso eu acreditava, ingenuamente, pois quando chegou o pagamento consegui amortizar metade do valor total, o que não era pouco, e isso com o rendimento do maior projeto em que já trabalhei na minha vida, um rendimento que me seria o bastante para me sustentar por meses em anos anteriores, quando as coisas eram acessíveis e todo mundo parecia ter se assentado confortavelmente na classe média. Começaram a aparecer baratas, vindas provavelmente de um terreno próximo ao nosso prédio – um terreno enorme, em frente a uma igreja evangélica, provavelmente de propriedade dela, do tamanho de uma quadra inteira, usado, em um canto, como depósito de lixo reciclável, mais para o meio como um playground – há ali diversos brinquedos, os quais, curiosamente, nunca vi nenhuma criança usar, nunca – e, no outro canto, mais próximo ao nosso prédio, uma casa de madeira improvisada onde não sei se mora alguém, tampouco nunca vi gente entrar e sair dali, as janelas estão sempre fechadas, é tudo muito misterioso. Tomei ciência de ainda outros problemas, por exemplo, em vez de fazer a mudança de endereço do meu contrato combo de celular e internet fixa do apartamento anterior para o novo, a empresa provedora criou um novo contrato, e, enviando-me as faturas referentes apenas à telefonia móvel deste novo contrato ao longo de três ou quatro meses, vai entender por quê, começaram a me cobrar por valores que eu não conseguia encontrar no aplicativo da provedora, que eu de início não sabia de onde provinham ou se a cobrança não seria antes algum golpe, alternativa que me pareceu, de início, a mais provável, pois éramos vítimas de tentativas de golpe diárias, assim como todo mundo, por telefone, e-mail, SMS, uma a mais, uma a menos, não fiz muito caso, até que cortaram a minha linha móvel, bem como a da minha esposa, que era minha dependente, e até resolver isso foi mais um parto, pensei em processar novamente, mas não o fiz, consegui falar com a ouvidoria da provedora, foi mais ou menos uma semana até resolver e eu já não aguentava mais a sujeira, tinha vergonha do nosso novo apartamento, não chamava mais ninguém para uma visita, para ocasiões festivas passamos a alugar a churrasqueira do prédio, dávamos uma maquiada no apartamento de vez em quando, é claro, uma varrida, uma ajeitada, mas o tempo era curto, e a sujeira tão grande que, quanto mais o tempo passava, com mais vergonha eu ficava de chamar a diarista, acostumada, imagino, a famílias burguesas que a chamam para o trabalho de duas a quatro vezes por mês, e não a antros em que a sujeira se acumula indefinidamente por conta da sujeira cotidiana que nunca termina.
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