X. O primeiro homem

Seguro um cabo branco estriado, uma borracha verde-limão a meia-altura entre a extremidade inferior e o topo, numerosos feixes de cerdas enfiados em pequenos orifícios. Chama-se escova de dentes, mas não faz mal. Com movimentos ascendentes, descendentes e circulares, uso o instrumento para espalhar uma pasta mentolada pela superfície dos dentes, esfregando-os no processo, tomando cuidado especial para remover resíduos que possam ter se depositado entre o esmalte da matéria óssea e as gengivas, enxaguando tudo depois. Dou uma conferida no meu rosto, na reflexão do meu rosto em uma superfície embutida em um gabinete plástico fixado à parede, na reflexão do meu rosto emoldurado por plástico e azulejos beges manchados pelo mofo, fios de cabelo grudados permanentemente ali, de quem seriam. Trata-se de um rosto regular, nada a dizer ou pensar sobre o rosto. Gostaria de seguir adiante, mas é preciso continuar o ritual, o qual continuo com a seguinte dúvida, Devo ou não devo usar enxaguante bucal? Opiniões divergem. Além disso, é necessário enxaguar o rosto, do que havia me esquecido, nada de especial sobre o rosto. Nada de especial sobre o rosto além da barba, longos fios despontando a partir de uma epiderme macilenta, escamosa, fios brancos misturados a castanho-claros e escuros, encobrindo cerca de um quarto da superfície, descendo até o pescoço, o bloco parando abruptamente numa linha ligeiramente curva como a marca deixada pela forca, após a abertura do cadafalso, abaixo da qual a ponta dos novos fios escurecem toda a área ao redor do pomo de Adão. Não, hoje não usarei enxaguante bucal. Não exalarei o hálito refrescante das propagandas, aquela sensação de estar surfando uma onda imensa, os barbitúricos guardados na porta maior do armário embaixo da pia. Voltarei para a barba, a mancha escura no pescoço, preciso de uma gilete ou vou de navalha hoje? Escolho a navalha. Chega de tomar atalhos. Mas não sei bem como usá-la. Da última vez foi um banho de sangue. Vou primeiro tomar um banho, pronto, banho tomado, sabonete etc., para que água quente abra os poros, tornando o raspar do fio da lâmina menos nefasto à pele, que agora brilha, empapada em suor e as primeiras gotas do que parece ser uma hemorragia iminente. Felizmente não sou hemofílico, uma das graças concedidas a mim, pelo que logo o meu pescoço parece estar apenas gravemente ferido, em vez de à beira de arrebentar. Enxaguo o rosto novamente, abarcando agora a região do pescoço. A água corre rosa pela pia, de início, e a deixo correr até ficar transparente. Para finalizar, tenho um tubo de uma loção pós-barba especial que ganhei de alguém, não lembro quem. Mas me pergunto se devo usá-la, o cheiro me desagrada um pouco, depois de um tempo lembra o de um cachorro molhado. Decido por usá-la mesmo assim. O ardor me desperta. Finalizado o toalete, dou mais uma conferida no rosto. Nada a dizer sobre o rosto. Apago então as luzes, saio pela porta e sigo triunfante para mais um dia de trabalho.

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Uma resposta para “X. O primeiro homem”.

  1. Região delicada. Acabei agora mesmo, de sentir esse fio quente, que não é meu…

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